Em Brasília, fora a afinidade, boa educação e bons modos, exigem-se outras senhas para se ter acesso a um grupo de amigos, colegas ou seja lá o que for. E aqui você precisa de um grupo. E como é difícil entrar num. Confesso que em 11 anos de cidade, às vezes, erro a password e trava o sistema... e me vejo só, ainda que cercado de gente.
Sou forasteiro, carioca. Essas duas características já me condenam por aqui... Mas como sou um carioca atípico, sou condenado pela metade. Explico. Em algumas situações, eu até consigo furar alguns cercos. Deve ser quando acerto as malditas senhas. Depois sou esquecido como se nunca tivesse existido. E olha que gosto e não tenho problema de sair sozinho. Contudo, tenho tentado mudar. Aceito convite até pra ir em batizado de boneca, como diria um amigo baiano, mas a recíproca comigo não é verdadeira.
No Rio, dois dedos de prosa já é a senha para um chopp ou ida ao boteco para ver um jogo (e olha que detesto futebol!). Aqui não. Aqui você vê e conversa com a pessoa todo dia (trabalho, academia etc.), mas ao convidar para fazer algo fora daquele ambiente, as desculpas soltam imediatas, prontas! É como se já houvesse a expectativa do convite, portanto a negativa precisava e estava pronta. Não me lembro de ter feito nenhum convite e o mesmo ter sido aceito de primeira.
Talvez por isso, todos os meus Amigos e Amigas “coincidentemente” sejam de fora e não foram criados por aqui. Aliás, conheço tão poucas pessoas nativas de Brasília, que talvez possa soar injusto a quem lê as minhas observações.
Deduzo que por aqui os canais não podem ser misturados. Aliás, é exatamente isso. Quando alguém faz aniversário comemora da seguinte maneira: festa com o pessoal do trabalho, uma outra para comemorar com o pessoal da academia, uma outra pra comemorar com os amigos da infância, uma outra para comemorar com os parentes, outra para comemorar com os colegas do trabalho da esposa... Exageros meus a parte, é mais ou menos assim mesmo que as coisas funcionam por aqui.
Tudo bem! O problema deve ser meu. Afinal “cariocas são tão arrogantes-simpáticos e superficiais, fazem festa por qualquer coisa e misturam tudo e todos... No fundo são uns chatos!” É o que já ouvi por aqui. Não vou rebater ou debater o mérito dos adjetivos, mas uma coisa é certa. Nas festas no Rio de Janeiro, nunca me senti um peixe fora d’água, mesmo junto a pessoas que conhecia a menos de uma hora.
No Rio, as pessoas vão logo dizendo a que vieram. Agradando ou não (muitos mais desagradam do que agradam). Aqui as palavras são medidas. Todos são tão educados, cordiais, que chego ficar vermelho quando solto um “porra” entre um grupo de marmanjos.
Até conheço pessoas a quem poderia chamar de amigas, entretanto não tenho a menor idéia sobre o que pensam da vida, do amor, do sexo (nem sei se fazem sexo!). São “amigos” que nunca falam de si. Amigos totalmente desconhecidos! Amigos que te perguntam como você vai e mudam de assunto imediatamente para não ouvirem a sua resposta. Talvez por isso todos aqui sempre estejam “bem”! Amigos que toda vez que encontro, tenho a sensação de estar puxando assunto com um desconhecido numa fila de banco. “Que calor! – É ta seco!; e o jogo? - Que jogo!?”.
Putz! É difícil pra cacete. Tudo bem! Sei que estou acostumado com a avacalhação carioca. O cara senta ao teu lado no trem ou no ônibus, movimento seguinte já te conta que o patrão é um filho-da-puta e o último salário foi todo pra pagar a mensalidade atrasada da geladeira e pro material escolar do caçula que este ano começou a estudar!
Aqui não tem isso. Até nos círculos de pessoas mais simples, onde encontra-se mais facilmente espontaneidade nas relações, todos estão preocupados com o que os outros vão pensar. O que precisa ser dito (quando dito!) é sempre em meia voz. Ninguém pode saber! Não é a toa que as pessoas costumam mentir. Mentem sobre os relacionamentos. Mentem sobre o emprego, onde moram, com quem moram o que comem, o que pensam e o que fazem.
Ok. Você tem razão isso acontece em outros lugares. E parece que estou carregando demais nas tintas do quadro que pinto. Afinal quem foi que disse que a lógica das relações cariocas têm que ser a mesma lógica daqui? Entretanto é tão bom encontrar acolhimento... É tão bom se sentir acolhido num círculo de gente que você conhece e convive.
Devo ter me tornado um chato intolerante nesses últimos anos em que vivo por aqui. E, com certeza, me tornei fechadão, quase hermético... Mas com o avançar da idade – e ela avança inexoravelmente! - tenho sentido falta de gente real na minha vida. Gente que fale das suas próprias flatulências. Gente que não tenha vergonha de dizer quem é e nem me faça sentir vergonha pelo que sou. Gente, pra quem eu possa ser gente e não apenas um número a mais na agenda do celular, do messenger ou do orkut.
Vou seguir o exemplo da Clarice e publicar o mesmo anúncio.
Sendo este um jornal por excelência, e por excelência dos precisa-se e oferece-se, vou pôr um anúncio em negrito: precisa-se de alguém homem ou mulher que ajude uma pessoa a ficar contente porque esta está tão contente que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa reparti-la. Paga-se extraordinariamente bem: minuto por minuto paga-se com a própria alegria. É urgente pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes, que até parece que só se as viu depois que tombaram; precisa-se urgente antes da noite cair porque a noite é muito perigosa e nenhuma ajuda é possível e fica tarde demais. Essa pessoa que atenda ao anúncio só tem folga depois que passa o horror do domingo que fere. Não faz mal que venha uma pessoa triste porque a alegria que se dá é tão grande que se tem que a repartir antes que se transforme em drama. Implora-se também que venha, implora-se com a humildade da alegria-sem-motivo. Em troca oferece-se também uma casa com todas as luzes acesas como numa festa de bailarinos. Dá-se o direito de dispor da copa e da cozinha, e da sala de estar.
P.S. Não se precisa de prática. E se pede desculpa por estar num anúncio a dilarecerar os outros. Mas juro que há em meu rosto sério uma alegria até mesmo divina para dar. (“Precisa-se” – Clarice Lispector)